Inovação e tendências
Reportagem: Ao descriminalizar as drogas, Portugal quebrou um paradigma
Em Portugal atacamos a droga, não o usuário.” Irônica, a frase é de um dos maiores especialistas em políticas sobre entorpecentes do mundo. Presidente do Observatório Europeu da Droga e Toxicodependência (EMCDDA, na sigla em inglês) e diretor do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências de Portugal, João Goulão é o mentor da reforma na política portuguesa, hoje um modelo mundial. “E olha que fomos o último país europeu a tratar do assunto.”
Após livrar-se da ditadura em 1974, Portugal viveu uma maré de liberalização sem contrapartida do Estado. Em 1997, quando Goulão assumiu o posto, havia uma escalada de dependência de heroína e criminalidade sem precedentes. O Executivo solicitou então a especialistas um projeto. A comissão advertiu: era preciso investir em prevenção, tratamento público e reinserção social. Nada adiantaria, porém, sem a descriminalização do usuário.
No Parlamento, os debates foram acalorados. “Diziam que íamos fazer de Portugal um paraíso para as drogas.” Em 2001, o país descriminalizou o porte e o consumo e criou uma rede de assistência aos viciados, que começa com as “comissões de dissuasão da toxidependência”, sob a tutela do Ministério da Saúde, e termina com incentivos fiscais a empresas que queiram contratá-los.
Para os consumidores, a descriminalização eliminou o motivo pelo qual os dependentes tinham medo de se submeter a tratamento. “A polícia, quando intercepta um usuário com problemas, leva-o às comissões. A preocupação é com a saúde. Não se cria mais estigma.” Não há internação compulsória nem registro policial.
Em 1997, segundo as estatísticas, 100 mil portugueses, ou mais de 1% da população, era viciada em heroína. O número baixou pela metade. Do total, 35 mil são tratados pelo Estado. Os índices de criminalidade despencaram, assim como o número de pessoas encarceradas e de contaminados por Aids. Mesmo com um governo de direita no poder e em meio à crise econômica, o programa é mantido. “Nosso modelo foi chancelado mundo afora e temos orgulho”, diz Goulão. “O problema da dependência deixou de ser a maior preocupação social de Portugal.”
Há dez anos atrás, Portugal lançou e experimentou o que poucos países se atreveram a tentar: a descriminalização da posse de droga para consumo, incluindo drogas que alguns países classificam como “duras”, como a cocaína e heroína.
Estas mudanças, na política nacional da droga em Portugal, constituem um ponto de viragem para o país e um marco na política internacional da droga. Em vez de tentar diminuir o uso através da punição dos consumidores, as novas medidas mantêm as drogas ilegais mas já não tratam o consumo como um crime.
As alterações em Portugal não se resumem ao tratamento da posse de drogas para consumo como uma contra-ordenação administrativa, também incluem um vasto leque de medidas em áreas como a prevenção e educação social, desencorajando o uso de substâncias, a redução de danos, o tratamento de toxicodependentes e a assistência na sua reinserção social.
Contrariamente às preocupações iniciais relativas à nova estratégia portuguesa, estudos mostram que o número de consumidores de drogas não aumentou dramaticamente, chegando mesmo a diminuir em algumas categorias. Além do mais, o número de pessoas com doenças relacionadas com o consumo de drogas (como VIH e Hepatites B ou C) diminuiu na generalidade.
FHC diz: Portugal foi o primeiro país a seguir integralmente uma das principais recomendações da Comissão Global sobre Política de Drogas por mim presidida: “Pessoas que usam drogas mas não causam dano a outros não são criminosos a encarcerar mas sim pacientes a tratar”.
"Trata-se também de uma política pragmática, despida de moralismos e preconceitos, cujo objetivo é preservar a saúde e a segurança dos cidadãos. Os instrumentos coercitivos podem ser utilizados quando necessário mas não são mais o componente central."
"Portugal provou que a descriminalização não leva a um aumento do consumo de drogas. Pelo contrário, demonstrou que uma estratégia pragmática e humana pode, de fato, reduzir o consumo de drogas, a dependência, as recaídas e a infeção por HIV."
Link 2: http://www.cartacapital.com.br/revista/748/portugal-ataca-a-droga-nao-o-viciado